Uma das surpresas mais desagradáveis que o dono de um carro pode ter é enfrentar um problema mecânico, buscar socorro na rede autorizada e deparar-se com a recusa da montadora de executar o reparo sem ônus, quando esperava ser assistido pela garantia.
Relatos desse tipo estão entre os mais comuns que chegam à coluna Defenda-se, que recebe queixas de leitores contra fabricantes e concessionárias, publicada às quartas-feiras no Jornal do Carro. O tom geral é de indignação, diante da sensação de desamparo em um momento de necessidade.
Em linhas gerais, a proteção mínima que o consumidor de qualquer bem durável possui é conferida pelo Código de Defesa do Consumidor: 90 dias contados a partir da data da compra. Essa é a chamada garantia legal. Mas a grande maioria dos fabricantes oferece uma cobertura, prevista no manual do produto, que costuma variar de um a cinco anos – é a chamada garantia contratual. Os prazos das duas garantias se somam, o que significa que um veículo com garantia de três anos pelo fabricante está coberto por três anos e 3 meses.
A rigor, durante esse período, a montadora responde pela qualidade do produto e deve fazer todos os reparos necessários gratuitamente; terminado o prazo, o ônus passa a ser do consumidor. Na prática, porém, nem sempre as coisas são tão simples assim. Há alguns casos em que a montadora pode negar o reparo grátis mesmo antes do fim da garantia contratual, e outros casos em que, mesmo após vencida ou cancelada a cobertura de fábrica, o cliente tem direito a exigir um conserto sem ônus.
Para examinar melhor o assunto e esclarecer os pontos que geram mais confusão, conversamos com o advogado especializado em direito do consumidor e consultor do Jornal do Carro, Josué Rios, a supervisora do Procon-SP Patrícia Álvares Dias e o advogado Igor Lodi Marchetti, do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor).
APROVEITE BEM A GARANTIA CONTRATUAL
Durante o período de cobertura de fábrica, a proteção segue as regras contidas no manual de garantia que acompanha o veículo. A montadora responde pela qualidade do produto e arca com todos os reparos necessários, desde que essas regras sejam obedecidas pelo consumidor. O dever da empresa é fornecer um conserto definitivo, que elimine por completo os defeitos eventualmente surgidos, sem sujeitar o cliente a idas e vindas intermináveis à autorizada.
É importante que o consumidor aproveite bem a garantia contratual. Isso significa não protelar a ida à concessionária em caso de anormalidades no funcionamento do veículo.
“Se o problema surgiu ainda dentro da garantia contratual, não perca tempo: vá ver isso o quanto antes”, aconselha Patrícia. “Quanto mais o consumidor esperar, mais irá facilitar uma eventual alegação, por parte da montadora, de que houve desgaste natural pelo uso. Isso sem falar no risco de agravar o problema e até provocar outros defeitos pela falta de assistência adequada.”
Se o problema foi constatado e levado ao conhecimento da concessionária dentro do prazo de garantia, a autorizada fez o reparo e, após o fim da cobertura de fábrica, o mesmo defeito reapareceu, o consumidor tem direito a exigir o reparo sem ônus.
“Nesses casos, em que o reparo foi malfeito ou ineficaz, entende-se que a montadora não cumpriu com sua obrigação de realizar um conserto de fato, mas apenas maquiou o problema até que expirasse a cobertura de fábrica”, diz Marchetti.
Quando o consumidor que reclamou durante a garantia entra com ação judicial para exigir o conserto gratuito, a chance de êxito é grande. “O Poder Judiciário reconhece os registros das queixas e dá procedência à ação”, diz Patricia. “Por isso, é muito importante que o consumidor registre sempre todas as suas reclamações, seja por ligações à central de atendimento da montadora, seja pela troca de e-mails. Guarde todos os protocolos, isso ajudará muito em caso de litígios no futuro”, recomenda.
AS CONSEQUÊNCIAS DA FALTA DE REVISÕES
Entre as condições comumente exigidas do consumidor para que a marca honre com a garantia contratual, está a realização de todas as revisões estabelecidas no plano de manutenção do veículo. Como preveem a verificação e substituição de vários componentes dentro dos períodos esperados de vida útil, elas ajudam a prolongar a durabilidade do veículo e reduzem a ocorrência de problemas.
“As revisões acabam sendo uma proteção para o consumidor, pois a montadora está se responsabilizando pelo bom estado do carro. Se ele seguiu à risca o plano de manutenção, a empresa não pode lhe negar todos os reparos necessários”, diz Marchetti. “Na falta de um reparo eficaz, o cliente pode inclusive alegar má prestação dos serviços.”
Na prática, porém, muitos consumidores são afastados pelos altos preços praticados pelas autorizadas e deixam de fazer as revisões obrigatórias. Com isso, dão margem ao cancelamento da garantia contratual – uma penalidade que costuma ser respaldada pelo próprio manual do produto. Mas Josué Rios faz várias ressalvas a isso.
“A exclusão da garantia depende de uma relação de causa e efeito com o problema real do veículo. Se o defeito não tem relação direta com a falta de revisão, então essa recusa não procede. Em outras palavras, para negar o reparo sem ônus, a empresa tem de comprovar que a pane ou o problema teriam sido evitados se o carro tivesse passado pela revisão”, frisa Rios. “Em muitos casos, a revisão é superficial – especialmente as primeiras, em que só se trocam óleos e filtros – e nem chega a inspecionar os componentes que foram afetados pelo problema.”
Patrícia diz que, nesses casos, a recusa do reparo sem ônus pode ser considerada um abuso de direito por parte da montadora. “É um ônus excessivo para o consumidor, especialmente se o item que apresentou problema é coberto pela garantia contratual. Ainda que o cancelamento da proteção esteja previsto no manual de garantia, trata-se de uma cláusula abusiva.”
E como verificar se o defeito surgido tem ou não relação com a falta de revisão? Para Patrícia, isso é mais simples do que parece. “É uma mera questão documental. Basta ver se a peça afetada faz parte do check list daquela revisão que deixou de ser feita pelo consumidor. Toda montadora tem uma lista de procedimentos realizados em cada inspeção programada.”
REPAROS FORA DA REDE AUTORIZADA
Outro efeito colateral dos preços salgados praticados pelas concessionárias é que muitos consumidores acabam recorrendo a oficinas independentes para fazer reparos em seus veículos. Isso também pode provocar o cancelamento da garantia contratual.
Nesse caso, porém, os especialistas consultados pela reportagem dizem que não há abuso ou ilegalidade, já que montadora e concessionárias não podem sofrer as consequências de eventuais reparos malfeitos realizados fora da rede.
“A marca não pode ser responsabilizada pelo que fizeram – seja pelo emprego de mão de obra não habilitada, que não recebeu o treinamento adequado, seja pelo uso de peças ilegítimas”, afirma Marchetti. “Para recusar a garantia, basta a montadora demonstrar que o defeito foi provocado pela intervenção da outra oficina.”
“Se houver qualquer problema decorrente de um serviço feito fora da rede autorizada, o consumidor terá de resolver isso com a oficina terceirizada”, explica Patrícia. “É um risco que ele assumiu ao contratá-la.”
O DIREITO A UM REPARO FORA DA GARANTIA
A regra geral, de que a montadora só é obrigada a oferecer um reparo grátis durante o período de garantia, não é absoluta. Existe uma hipótese em que ela continua respondendo pela qualidade do produto mesmo se a garantia de fábrica já expirou ou foi cancelada: aquele defeito de fabricação que só vem à tona posteriormente. É o que o jargão jurídico chama de vício oculto.
“Quando estamos falando de defeitos de fabricação, boa parte deles não é visível imediatamente pelo leigo, mas só se revela em um segundo momento. Por isso eles são chamados de vícios ocultos”, ensina Rios. “Nesse caso, o consumidor tem 90 dias para reclamar, contados não da compra do produto, mas de quando o defeito se manifestar. E isso vale mesmo que a garantia contratual já tenha expirado há muito tempo.”
Vale observar que a falha mecânica não pode decorrer do desgaste natural pela utilização normal do produto ao longo do tempo, nem de mau uso (a utilização fora dos padrões adequados) por parte do consumidor. Nessas duas situações, é o próprio consumidor que deve pagar pelo reparo, já que o que ocorreu na verdade não foi um defeito de fabricação.
“Em caso de vício oculto, o consumidor pode reclamar e exigir o reparo grátis desde sempre: após um ano, dois anos, cinco anos, não importa. O problema é que, com o tempo, vai ficando mais difícil sustentar e provar que aquela falha não decorreu do próprio uso prolongado do produto”, resume Marchetti.
O advogado cita como exemplo claro de vício oculto o caso do Volkswagen Fox, envolvido em vários acidentes com consumidores que tiveram dedos decepados por uma peça do mecanismo de rebatimento do banco traseiro.
“O consumidor pode ter passado muito tempo com o carro sem notar o problema, a garantia contratual pode ter expirado. Quando o problema for constatado, não importa a quilometragem: a marca tem de solucionar o defeito, além, obviamente, de se responsabilizar pelos danos sofridos pelos clientes.” (Na época, depois que o escândalo estourou, a VW fez um extenso recall dos carros afetados para eliminar o problema).
COMO PROVAR A EXISTÊNCIA DO DEFEITO DE FABRICAÇÃO
Como vimos, a responsabilização da montadora e o direito do consumidor a receber um reparo grátis mesmo fora da garantia dependem do reconhecimento de que a falha do veículo não derivou de mau uso ou do próprio desgaste natural do veículo, mas sim de um defeito de fabricação. Na prática, essa é uma questão de prova que terá de ser enfrentada pelas partes durante um litígio judicial.
Há vários caminhos para se buscar a comprovação de que ocorreu vício oculto. Um deles é analisar a gravidade do defeito à luz do tempo de vida útil das peças afetadas. Por exemplo, não é normal o motor de um carro fundir com apenas 10 mil km de uso.
“O Superior Tribunal de Justiça já proferiu decisões confirmando esse entendimento, de que a empresa deve responder pelo produto durante o prazo de vida útil de seus componentes”, diz Rios.
Mas como medir esse prazo de vida útil? “Ou a montadora divulga essa durabilidade – o que é raro, pois não lhe convém revelar que certos componentes podem ter vida útil curta – ou então a questão terá de ser discutida em uma perícia judicial.”
Marchetti afirma que essa linha de raciocínio citada por Rios é muito utilizada, mas não é o único caminho possível para responsabilizar a empresa.
“Existe também a questão da obsolescência programada, que é desleal. Nessa prática, produtos são concebidos para apresentar problemas depois de certo tempo e a empresa não fornece peças de reposição, tudo para obrigar o consumidor a comprar um produto novo”, explica o advogado. “Nesse caso, além de pedir a troca do carro ou o cancelamento da compra, o consumidor pode pedir indenização por dano moral, pois foi vítima de uma fraude, que maculou a boa fé objetiva que regula as relações de consumo.”
Patrícia reforça a importância de documentar as queixas, pois esses elementos serão importantes para formar a convicção do juiz de que houve vício oculto. “Se o consumidor exibe várias ordens de serviço ou protocolos de atendimento envolvendo o mesmo defeito, isso é um indício importante, mostra que o defeito é grave. Mostra que o cliente fez tudo o que pôde e esteve ao seu alcance e a questão não foi resolvida, dando suporte ao pedido de troca do produto ou cancelamento da compra.”
Para entrar com a ação judicial, o consumidor não precisa exibir todas as provas já na petição inicial. Mas deve apresentar um mínimo de indícios para convencer o juiz a processá-la. Por se tratar de uma relação de consumo, o ônus da prova é invertido, ou seja, é da montadora o dever de provar a inexistência do direito do consumidor e desmontar as alegações da petição inicial – demonstrando que ocorreu desgaste natural do veículo, por exemplo. Isso inclui o dever de bancar os gastos com a perícia.
No entanto, se no final a ação for julgada improcedente, afastando a responsabilidade da montadora (se for comprovado que houve mau uso, por exemplo), o consumidor derrotado terá de pagar à empresa os custos da perícia e honorários advocatícios, salvo se tiver recebido no início do processo o benefício da gratuidade judiciária.