Todos os dias, às 16h58, o gerente sênior da área de engenharia experimental da Fiat, Robson Cotta, encerra a jornada de trabalho. A diferença é que ele não precisa ir embora para casa. Como a maioria dos funcionários de montadoras ao redor do mundo, Cotta também está trabalhando totalmente em regime de home office.
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Inscreva-seA adaptação à nova rotina, no entanto, não foi tão simples. O engenheiro mecânico de 63 anos chefia uma divisão em que o trabalho em campo é essencial. A engenharia experimental testa no mundo real o carro projetado do lado de dentro dos muros das fabricantes.
“O trabalho não para”, garante Cotta. Montadoras estão sempre testando algo novo, seja um carro inteiramente reprojetado (como a picape Strada, no caso da Fiat), seja alguma nova solução técnica. Por isso, no departamento chefiado por Cotta, às vezes o home office não substitui o “road office”. Carros são testados nas ruas e estradas. E ele coordena essas operações sem sair de seu apartamento, no centro de Belo Horizonte.
“Quando alguém precisa entrar na fábrica para algum trabalho específico, temos de justificar quem vai e por que vai”, diz. Mesmo com a produção parada, Cotta afirma que às vezes é necessário fazer um teste específico, em um laboratório de acústica ou no dinamômetro, por exemplo. Nessas situações, o engenheiro diz que a pessoa deve realizar o trabalho sozinho. Além de seguir as normas de segurança e higiene. “Se um funcionário vai passar um carro para outro, há todo um procedimento de higienização, que envolve limpeza com álcool em gel”.
Rua faz falta
”Ele lamenta não poder fazer o que mais gosta, que é dirigir enquanto experimenta um carro. Mas garante que comandar um departamento a distância “aguçou a coordenação”. Entre os pontos positivos que ele vai levar dessa experiência inédita, Cotta afirma que “a parte virtual funcionou muito bem”. O lado negativo do “home office” é que ele não tem saído para testar. “Quem trabalha com projeto pode não sentir tanto, mas a gente tem prazer em dirigir”, garante o engenheiro. Cotta diz que não se incomodava em viajar apenas para buscar mangas em alguma fazenda do interior de Minas Gerais.
Fora do horário de expediente, Cotta tem aproveitado o tempo no “home office” para organizar as coisas em seu apartamento, entre as quais as “pilhas” de publicações sobre automóveis, que mal tinha tempo de ler. “Cada dia exploro uma gaveta”, diz. Morando com a esposa e um dos filhos, ele afirma que a necessidade de isolamento acabou promovendo maior interação familiar. O engenheiro só sai nos finais de semana, para ir até o sítio localizado em Nova Lima, na região metropolitana da capital. Lá, seu entretenimento é mexer em dois de seus Alfa Romeo antigos, um JK e um 2300.
Bugatti na garagem
A pandemia também alterou a rotina dos funcionários da Bugatti, fabricante de superesportivos localizada em Molsheim, na França. Mas, enquanto a maioria dos trabalhadores levou para casa um computador para o serviço remoto, alguns levaram um Chiron ou um Divo, os dois modelos superesportivos produzidos atualmente pela empresa.
É o caso de Lars Fischer e Sven Bohnhorst, responsáveis pelos testes de chassi dos carros produzidos pela marca. De acordo com Fischer, engenheiro de 48 anos, embora a fábrica esteja fechada, o trabalho de desenvolvimento não para e eles permanecem dirigindo diariamente, em pistas de testes e vias públicas.
Mas a pandemia impôs mudanças na rotina. Se anteriormente o planejamento das tarefas de testes era realizado semanalmente, agora ele é feito a cada dois dias, porque a situação de emergência pode mudar rapidamente Pode haver fechamento de pistas, por exemplo.
Testes individuais
Outra alteração importante é que atualmente os testes são feitos por apenas uma pessoa. O padrão da Bugatti prevê ensaios em dupla. Enquanto um engenheiro dirige, o passageiro verifica e armazena os resultados no computador. Agora, para manter o distanciamento social, os profissionais trabalham isoladamente.
De acordo com Sven Bohnhorst, de 31 anos, a mudança aumentou o tempo dos testes em 30%, porque algumas pistas de têm poucos locais de parada. E o motorista deve estacionar para realizar a tarefa que seria feita pelo parceiro.
Cada jornada ao volante pode durar até sete horas. Mas Bohnhorst, especialista em calibração de direção e suspensão, garante que, apesar do nível de concentração exigida para realizar testes com um carro de 1.500 cv, ele se diverte todos os dias enquanto trabalha.
O lado negativo, segundo ele, é a falta de contato direto com os colegas. Fischer observa que, embora muitas coisas possam ser resolvidas por meio de teleconferência, a comunicação cara a cara é mais fácil para lidar com temas mais complexos.
Enquanto viagens para pistas de testes mais distantes não estão sendo permitidas (já que pernoites em hotéis não são autorizados no momento), Bohnhorst encontrou tempo para mexer em seu clássico Porsche 911 Carrera. “É na minha pequena oficina que eu recarrego as baterias.”
Design em ‘home office’
Um dos passatempos do diretor de design da Bugatti, Achim Anscheidt, é restaurar bicicletas que ele adquire em mercado de pulgas, apenas com a finalidade de presentear amigos. Para isso, ele mantém uma pequena oficina em Berlim, na Alemanha, onde mora. As bicicletas têm tomado mais tempo livre do “home office” do designer do que seu Porsche 911 histórico, que foi restaurado. Outra raridade na garagem do profissional de 57 anos é um raro Bugatti Type 35 de 1920, à espera de peças para a restauração.
Anscheidt tem coordenado sua equipe de designers de sua casa. Seu local de trabalho é um aconchegante cômodo com paredes de madeira que recebe muita luz natural, localizado na parte superior de sua residência, uma antiga casa em estilo alpino na capital alemã. Ele diz que o local é ao mesmo tempo seu retiro e sua fonte de inspiração. Esse item é indispensável em sua profissão. É lá que ele experimenta novas linhas, desenvolve ideias e lida com os desafio de manter-se isolado.
Mas, como em sua visão o processo criativo é fundamentalmente baseado no contato direto e na troca de experiências entre colegas, esse é o ponto em que seu cantinho ensolarado e silencioso em Berlim deixa de ser um benefício. Até porque no momento ele está trabalhando intensamente no desenvolvimento tanto dos modelos atuais como em futuros automóveis da marca.
E isso sem contar que, em casa, não há como ter acesso a tecnologias como realidade virtual no home office. Essas etapas deverão esperar pela volta à fábrica.
Mustang elétrico
Técnicos em calibração e engenheiros da Ford nos EUA também levaram mais do que o laptop da empresa quando tiveram de cumprir isolamento social. Ao menos uma dúzia deles foi para casa dirigindo um Mustang Mach-E. O modelo é o primeiro carro 100% elétrico da marca. O Mach-E deveria chegar às lojas nos EUA ainda no primeiro semestre. Por isso, a Ford tomou a decisão de que o trabalho de ajustes finais continuasse em casa, para não perder o prazo estipulado
Alguns profissionais são responsáveis pela programação dos computadores do carro. São eles que determinam como os motores elétricos devem reagir a cada circunstância, de acordo com variações do terreno. Outros técnicos estão calibrando as funções da central multimídia. Ela projeta uma infinidade de informações sobre o carro na enorme tela vertical no centro do veículo. Com um Mustang Mach-E na garagem, o isolamento passa mais rápido.