Há 40 anos, em 5 de julho de 1979, era apresentado o “Cachacinha”, como ficou conhecido o Fiat 147 a álcool. O apelido é alusivo ao odor produzido pela queima do etanol utilizado pelo primeiro veículo do mundo feito em larga escala com motor movido exclusivamente pelo derivado da cana-de-açúcar.
Tudo começou seis anos antes do lançamento do “Cachacinha”. No dia 4 de março de 1973, houve uma reunião com o presidente da Fiat SpA, Giovanni Agnelli, e o governador de Minas Gerais, Rondon Pacheco. Os dois assinaram um documento com os termos que garantiria a construção da fábrica da Fiat em Betim, nos arredores de Belo Horizonte.
Em outubro de 1973, os membros da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) elevaram o preço do produto em mais de 400%. A iniciativa foi um protesto contra o apoio dos Estados Unidos a Israel durante a Guerra do Yom Kippur (Dia do Perdão).
O resultado foi o aumento generalizado dos preços de todo tipo de produto nos quatro continentes. Afinal, naquela época o mundo era ainda mais dependente do petróleo do que hoje. No Brasil, além da inflação, houve reflexos como o fechamento dos postos de combustíveis nos fins de semana. As competições automobilísticas também ficaram proibidas.
Fiat 147 a etanol é fruto do Pró-álcool
A resposta para o problema foi a criação, em novembro de 1975, do Pró-álcool. O Programa Nacional do Álcool tinha como meta transformar o derivado da cana-de-açúcar em combustível para veículos.
Voltando à Fiat, a fábrica de Betim, a primeira da empresa fora da Itália, foi inaugurada em 9 de julho de 1976. Quatro meses depois, ocorreu a 10ª edição do Salão do Automóvel de São Paulo. Foi lá que a marca mostrou ao público o primeiro protótipo do 147 a álcool. O modelo já havia percorrido milhares de quilômetros em testes.
Em 1977, mais exemplares foram produzidos para novos testes e ajustes de produto e da tecnologia. Se no 147 a gasolina o motor era de 1.050 cm³ , para a versão a etanol a Fiat apostou em um 1.3.
Motor é de projetista da Ferrari
Os dois quatro-cilindros eram da família “Fiasa” e foram projetados por Aurelio Lampredi. O italiano criou motores para marcas como a Isotta Fraschini e a Ferrari. O V12 criado por ele foi utilizado nos carros de competição da Ferrari, nos anos 50.
Entre as modificações, a taxa de compressão passou de 7,5:1 (gasolina) para 11,2:1 (etanol). O carburador teve o corpo modificado para lidar com a mistura mais rica entre ar e combustível. Isso explica o consumo, em média, 30% maior. Essa diferença ocorre até hoje nos carros flexíveis e dotados de injeção eletrônica.
Outra solução surgida no Fiat 147 a etanol é o sistema de para partida a frio. O dispositivo injeta gasolina (armazenada em um tanquinho) diretamente no coletor de admissão. Como o etanol tem poder calorífico menor que a gasolina, é mais difícil dar a a partida no motor pela manhã. Isso ocorre especialmente em dias frios e em locais com predominância de baixas temperaturas.
Torque 47% maior
A potência do Fiasa 1.3 a etanol não teve ganho importante em relação ao 1.050 a gasolina. Eram 62 cv, ante 61 cv. Já o torque era superior em mais de 47%. O 1.050 a gasolina gerava 7,8 mkgf, enquanto o 1.3 a etanol produzia 11,5 mkgf. O câmbio de quatro marchas foi mantido no modelo como novo motor.
A chegada do etanol às bombas dos postos espalhados pelo País foi gradual. Isso também ocorreu com as entregas do “Cachacinha” às concessionárias. Os primeiros lotes do Fiat 147 a etanol foram cedidos ao governo federal. Com a frota do Estado era pequena, podia ser acompanhada de perto.
Problemas gerados pelo etanol
Ronaldo Ávila, atual supervisor de Engenharia de Produto da FCA, relembra os problemas surgidos com o carro a etanol. Ele diz que era preciso descobrir como lidar com a oxidação de peças como tanque, bomba de combustível, tubulações e carburador, entre outros. “Tudo precisava ser mais robusto”, conta.
A solução foi utilizar níquel químico nas peças. “Esse metal cria uma camada de proteção nos componentes, inibindo as ações do etanol”, explica Ávila. Ele relembra um caso que ilustra como as soluções foram surgindo “no processo”.
“O carro de uma cliente ia e voltava com frequência da concessionária. O escapamento era corroído rapidamente e não encontrávamos uma solução. Analisamos a rotina dela, que ir e voltar da padaria. E também ir e voltar do trabalho”, diz Ávila.
De acordo com ele, os trajetos eram muito curtos. Com isso, o motor não atingia a temperatura ideal de funcionamento. Havia grande acúmulo de água no sistemam, o que gerava a corrosão. “Entregamos um escapamento de inox para essa cliente e o problema acabou”, conta Ávila.
De 1979 a 1987, foram vendidas 120.516 unidades do Fiat 147 a etanol.
Fiat 147 está ótimo após 40 anos
Recentemente, a Fiat resgatou um dos primeiros 147 entregues ao governo. O exemplar estava em Brasília, a serviço do Ministério da Fazenda.
Após ser “dispensado”, o carro foi guardado em um galpão. Isso porque carros oficiais não podem ser revendidos. No painel há uma plaqueta na qual se lê: “Este veículo é inalienável. Trata-se do primeiro veículo produzido em série com motor movido a álcool hidratado. Por ocasião de sua baixa de serviço deverá ser recolhido ao museu da Fazenda Federal. Brasília, 5 de julho de 1979”
O 147 está em excelente estado de conservação. Segundo Robson Cotta, gerente de Engenharia Experimental da FCA, o fato de ter ficado em Brasília ajudou. O ar seco da capital federal evitou o surgimento de ferrugem.
“Esse carro não foi repintado. Recebeu apenas retoques e tem até alguns amassados por causa do uso”, diz Cotta. A pintura é preta e há uma faixa branca na altura da linha da cintura. Outros detalhes são as letras “MF” (Ministério da Fazenda) e a inscrição “movido a álcool”.
Ao volante do Fiat 147 a etanol
A cabine mostra o desgaste natural causado pelo tempo de uso. As marcas estão no revestimento dos bancos, volante e em itens como chave de seta e botões no painel. Mas, para um carro de 40 anos, o 147 está muito bem cuidado. Até o carpete é original.
O volante grande e de aro fino é uma marca dos anos 80. O painel de instrumentos com mostradores quadrados e cantos arredondados traz à memória os Fiat 147 da infância.
Cotta vai junto durante o test-drive na pista de testes no complexo da fábrica de Betim. O 147 a etanol é a “menina dos olhos” dele.
Tento dar a partida uma, duas vezes. “Segura no acelerador”, diz ele. Funcionou. Com a primeira marcha engatada, o carro começa a arrancar. Percebo que o Fiat 147 a etanol é bem mais esperto que a versão a gasolina avaliada antes.
Com a segunda engatada, o 147 a etanol mostra que a vida ficará mais divertida na próxima volta. Terceira e quarta, entro na reta e o carrinho chega aos 90 km/h. Ataco a curva do circuito oval sem reduzir e o Fiat mantém a velocidade. O câmbio tem engates fáceis, mas “perdidos”. O motorista só saberá se segunda está engatada depois de acelerar.
Desde que voltou à fábrica, o 147 só teve os fluidos trocados. E mostra ser muito estável, mesmo após 40 anos de batente.
Apesar de o volante ser enorme, o hatch é esperto. E responde bem na hora de trocar de faixa ou encarar um curva de modo mais “agressivo”.
As frenagens, por sua vez, requerem algum cuidado. Como não há servo-freio, é preciso pisar com força no pedal para o sistema funcionar de forma eficiente.
Barulho? Só o som característico do motor 1.3 levando o 147 aos 90 km/h. Enquanto isso, éramos ultrapassados por um Jeep Renegade em testes. Segundo Cotta, quando era novo o primeiro carro a álcool da Fiat podia atingir 110 km/h com tranquilidade.
Os próximos 40 anos
A Fiat informa que o etanol pode ser uma boa alternativa à eletrificação que ocorre na Europa. Segundo informações da empresa, o combustível vegetal poderá ser utilizado em modelos híbridos. Outra aposta pode ser em veículos movidos a célula a combustível abastecidos com etanol.
João Irineu, diretor de Assuntos Regulatórios e Compliance da FCA do Brasil, diz que a eficiência do etanol pode melhora. Segundo ele, isso seria possível reduzindo a quantidade de água adicionada ao produto. O ideal, de acordo com ele, seriam 2% – a mistura tem entre 5% e 7% de água.
A empresa vem trabalhando em duas frentes. Uma delas inclui os novos Firefly 1.0 e 1.3 com turbo e tecnologia flexível. Da outra faz parte um motor com turbo (da mesma família), só a etanol.
A taxa de compressão será ainda mais alta que dos motores flexíveis. O resultado será maiores potência e torque, com menor consumo.
Os novos motores poderão ser associados a outros, elétricos. Ou os chamados sistemas híbridos leves, de 48V.
Próximas regras de emissões
A queima do etanol emite cerca de 3% a menos de CO² (dióxido de carbono) que a da gasolina. E o ciclo da cana-de-açúcar (plantação, fotossíntese, crescimento) absorve de 70% a 80% dessas emissões.
Segundo a FCA, os investimentos para fazer com que os carros carros 100% a etanol feitos no Brasil atinjam as metas de emissões são menores se comparados a outros elétricos. Em 2023, a regra ficará 11% mais rigorosa. A meta é chegar a 118 g/km, ante as atuais 133 g/km.
Essa conta considera apenas o Tank to Wheel (TTW). Ou seja: abastecimento, consumo e emissões em forma de CO² pelo veículo.
Há também a norma Well to Wheel (WTW). Nessa conta entra todo o processo de produção do etanol. Inclusive a absorção de Co² pela cana=de=açúcar. Nesse caso, a frota de veículos brasileira produziria, em média, 103 g/km e estaria bem abaixo da meta que ainda nem sequer entrou em vigor.
Atualizada em 5/7 às 12h12