Barragens e automóveis

A auto-certificação de empresas sem uma rigorosa fiscalização adicional é como entregar o galinheiro aos cuidados da raposa

od5017con1_oncrash_cam7 Crédito:

Qual a relação entre uma mineradora e uma fábrica de automóveis?

Aparentemente, nenhuma, exceto ambas serem auto-certificáveis. Ou seja, apresentam ao governo o atestado de empresas terceirizadas de que cumprem as exigências da legislação.

No recente desastre da barragem de Brumadinho, ficaram evidenciadas:

Continua depois do anúncio

  1. que a legislação atinente à segurança das barragens e níveis de risco é falha;
  2. que os certificados que atestam sua estabilidade por empresas terceirizadas não são confiáveis;
  3. que as empresas terceirizadas que certificam as barragens não são proibidas de atender a outras demandas da mineradora, criando vínculos comerciais entre elas.

Engenheiros da empresa alemã TÜV SÜD, encarregada de certificar a barragem de Brumadinho, afirmaram que foram pressionados pelos funcionários da Vale, pouco antes do rompimento: “Vão ou não vão assinar estes certificados?”

A fábrica de automóveis também deve satisfação ao governo brasileiro de cumprir a legislação especifica com exigências de segurança, consumo, emissões, etc. Como o governo não tem (mas deveria…) condições de verificá-las por seus próprios órgãos, aceita então a comprovação através de certificados emitidos pelas próprias fábricas ou por empresas homologadas. É a auto-certificação, que dá margem a vários problemas.

Para começo de conversa, nossa legislação é falha pois está sempre defasada em relação ao Primeiro Mundo. Aliás, nem precisa cruzar o equador: leis argentinas de segurança veicular são mais atualizadas e rigorosas que as nossas.


Além disso, nossas exigências de segurança veicular não seguem um único padrão: por incrível que pareça, o Brasil não formulou suas próprias regras e concede aos fabricantes duas opções.

Como assim?

No Brasil, a fábrica pode decidir entre seguir antigas legislações norte-americana ou européia. Fácil de explicar: o governo brasileiro sucumbiu diante da pressão dos lobistas dos fabricantes pois à época em que a lei foi elaborada, só tínhamos empresas da Europa ou dos EUA.  Então, nossa legislação não é própria, mas foi “elaborada” para facilitar a vida (e os custos) das fábricas e aceita passivamente que cada modelo siga as exigências de seu país de origem.

A consequência desta falta de padronização é que nossos modelos, mesmo auto-certificados pelo fabricante, tomam bomba, por exemplo, ao serem submetidos ao crivo do LatinNCAP. Essa entidade uruguaia independente realiza crash-tests em nossos carros e nem todos são aprovados quando confrontados com padrões internacionais atualizados.


Um exemplo típico foi o da proteção contra impactos laterais: alguns de nossos compactos (Peugeot 208, Ford Ka, Chevrolet Onix) tomaram bomba nos testes do Latin NCAP. Depois que foram divulgado os resultados, as fábricas correram para reforçar sua estrutura lateral e se enquadrar no padrão europeu.

É isso mesmo: quem determina os padrões de proteção aos ocupantes de nossos carros é uma entidade uruguaia. Que faz os testes de acordo com suas próprias regras e que se dane a legislação brasileira…

Outro problema é que a lei, quando existe, não é cumprida: o Código de Trânsito Brasileiro, por exemplo, foi aprovado e publicado há mais de 20 anos mas está longe de ser implantado em sua plenitude.


A segurança de uma barragem é de exclusiva responsabilidade da mineradora. A do automóvel não depende só da fábrica: ele pode contar com sofisticados dispositivos de segurança, mas 90% dos acidentes, segundo as estatísticas, são provocados pelos motoristas.

A tragédia de Brumadinho comoveu o Brasil e o mundo. Mas, a cada três dias, se contabiliza o mesmo número de vítimas nos acidentes de trânsito, sem repercussões nem protestos.

Atribuir somente à auto-certificação a responsabilidade de acidentes em barragens e automóveis é tapar o sol com a peneira. Entretanto, este sistema faz lembrar a história de se entregar o galinheiro aos cuidados da raposa.


 

Mais Artigos

Preço do carro não para de subir. Parte da culpa é de quem reclama

Exigências governamentais de segurança e baixas emissões encarecem o carro. Mas a preferência dos consumidores também estimula as fábricas

Quem matou o motociclista de Uberaba?

Desrespeito à legislação provoca acidentes, alguns somente com prejuízos financeiros… Mas outros são fatais 

Milhões de km de testes… E os carros não param de dar defeito

Um pUm presidente de montadora tão honesto que confessou o inconfessável: a má-qualidade dos carros que fabrica e venderesidente de montadora tão honesto que confessou o inconfessável: a má-qualidade dos carros que fabrica e vende

E se o petróleo acabasse amanhã?

São dezenas de projetos para a energia “limpa”, desde uma cópia da locomotiva até o elétrico a partir do etanol

Deputado insano quer permitir importação de carros usados

Projeto de lei surrealista que está circulando na Câmara dos Deputados transformaria o Brasil num sucatão internacional de automóveis

Caminhoneiros convencem Bolsonaro (quem diria…) a reduzir teor de biodiesel

Mistura de diesel e biocombustível acima de 10% pode emperrar o motor, mas governo baixou mistura para baixar o preço

Continua depois do anúncio