“Estou indo comprar ração para a cachorrinha.” De bermuda e tênis, numa manhã escaldante de verão em São Paulo, Francisco Maresca, de 77 anos, enfrenta o trânsito pesado das ruas da Vila Formosa, na zona leste de São Paulo, ao volante de um Ford modelo A fabricado em 1928.
A capota de lona e as janelas de plástico enroladas ajudam a amenizar o calor. Minutos depois, ele está de volta com o almoço de Belinha, uma west highland white terrier que é o xodó da família. A cena, mais do que inusitada, é corriqueira na vida de “Chico do Fordinho”, como é conhecido entre os amigos o empresário aposentado, de 77 anos. Desde 1967, o carro que em 2018 completou 90 anos de idade está em sua garagem. E circula pelo menos uma vez por semana.
LEIA MAIS:
A história de Maresca com esse Fordinho é singular. “Eu me casei em 1966, minha mulher ficou grávida e eu decidi comprar um carro para o meu filho”, conta. “Como naquela época não sabíamos com antecedência se o bebê seria menino ou menina, esperei a criança nascer para fazer o negócio.”
Quando Francisco Maresca Júnior nasceu, “ganhou” um clássico, afinal, o Fordinho era um ícone e já tinha quase 40 anos de idade. A família fez muitas viagens nos fins de semana com o carro, sucesso nas rodovias Anchieta e Imigrantes. A casa de praia no litoral sul paulista era o destino preferencial.
Quis o destino, porém, que Júnior, mesmo gostando do carro, não pudesse dirigi-lo. “O Chiquinho é muito grande, não cabe atrás do volante”, diz Maresca. Explica-se: o Ford 1928 tem bancos fixos e o espaço entre o encosto do banco e o volante não é muito generoso. “Eu mesmo procurei não engordar senão não caberia no Fordinho”, diz o pai.
Resistência e economia
Num anúncio publicado nas páginas do Estado em 27 de janeiro de 1928, a Ford apresentava ao consumidor brasileiro as “primeiras ilustrações” de sua renovada linha de carros de passeio. E convidava os paulistanos para uma exibição dos novos produtos, num show room na Praça da República.
O texto enumerava os importantes avanços técnicos para a época: “Partida automática, cinco rodas de raios de aço, pneumático sobressalente, limpador de para-brisa, velocímetro, medidor de gasolina, lâmpada de taboleiro, espelho retrospectivo, luz traseira e pare, medidor de óleo, ferramenta, bomba Alemite para lubrificação, lanternas laterais, amperímetro”.
Com exceção do jogo de ferramentas e da manivela para acionamento manual do motor, todos esses itens ainda estão presentes no Ford A de Maresca — uma das cinco milhões de unidades que a Ford fabricou até 1932, e que substituiu com estrondoso sucesso o lendário modelo T.
O anúncio no Estado ainda informava que o carro alcançava de 90 a 100 km/h e fazia de nove a 14 km com um litro de gasolina. “Até hoje, nunca mexi seriamente nesse motor”, afirma Maresca. Essa frase encheria de orgulho Henry Ford, que não se cansava de anunciar que concebeu o carro pensando em robustez, durabilidade e simplicidade mecânica.
Maresca diz não ter ideia da quilometragem do Fordinho, mas ressalva: ” Até hoje, só fiz manutenção nesse motor”. De fato, o propulsor de quatro cilindros, 3.285 cm³ de cilindrada e potência de 40 cv a 2.300 RPM mantém suas características originais, assim como o câmbio de três marchas com alavanca no assoalho, os freios a varão, o volante de quatro raios e os “bigodes” — duas alavancas na coluna de direção, uma de cada lado, que têm a função de avanço manual do distribuidor (à esquerda) e acelerador (à direita).
Ligar o carro é algo que exige habilidade e conhecimento. Antes de acionar a partida, é necessário abrir a torneira de gasolina, abaixo do painel — a alimentação do motor é feita por gravidade, já que o tanque se localiza perto do para-brisa –, empurrar a alavanca do avanço do distribuidor, puxar o afogador e acionar o acelerador manual.
O motor, normalmente, pega de primeira. Em marcha, a imagem que se destaca, na ponta do carro, sobre a tampa do imenso radiador cromado, é um discreto termômetro, incrustado no centro do do logotipo da Ford. O filamento de mercúrio sobe à medida que o motor se aquece.
Nessas cinco décadas, a principal alteração promovida no carro por Maresca foi a mudança de cor. Quando o Fordinho foi adquirido, era amarelo, com rodas da mesma cor. No início dos anos 80, foi pintado de vermelho, com estribos e para-lamas em preto. “A GM lançou a tonalidade vermelho álamo para a linha Opala, me apaixonei pela cor e resolvi pintar o Fordinho”, diz o dono. No mais, é o mesmo carro há 90 anos.