A chegada ao Brasil da Coronavac, vacina contra a covid-19 que é fruto da parceria entre o laboratório Sinovac Biotech, com sede em Pequim, e o Instituto Butantan, de São Paulo, reavivou um infundado preconceito contra produtos oriundos da China. E, se no caso de medicamentos isso não tem validação, em relação a automóveis faz ainda menos sentido.
Essa visão surgiu em passado recente, quando muitos produtos “made in China” que chegavam ao País eram cópias de mercadorias de marcas consagradas e/ou tinham baixa qualidade. “No começo dos anos 1980, a indústria manufatureira predominava na China com produtos baratos e de baixo valor”, diz o CEO da Caoa Chery, Marcio Alfonso. Por isso, muitos brasileiros ficaram céticos com relação a tudo que vinha de lá.
Nesses 30 anos, muita coisa mudou. Os Chevrolet Onix e Tracker, por exemplo, foram desenvolvidos no país asiático. O Ford Territory vem de lá (leia mais na próxima página), assim como os Volvo XC60 e XC90.
A própria Caoa Chery comprova essa mudança. De marca inexpressiva quando atuava sozinha no Brasil, a Chery passou a ter carros desejados após evoluir em seu país de origem e, sobretudo, ter a operação brasileira adquirida pela Caoa.
Agora, a marca oferece carros para lá de modernos. Como por exemplo o sedã elétrico Arrizo 5e e o Tiggo 8, único SUV médio com sete lugares feito no Brasil.
Produtos baratos e de baixo valor agregado
O Effa M100, primeiro carro chinês à venda no País, chegou em 2007 e chamava a atenção pelo motor fraco (1.0 de 47 cv) e a baixa qualidade. Já o Lifan 320, cópia descarada do inglês Mini Cooper, não ajudou a melhorar a imagem dos carros importados da China.
Em 2011, a JAC Motors mudou esse paradigma. O forte investimento em marketing incluiu o apresentador Fausto Silva como garoto propaganda. O J3 (hatch e sedã) tinha desenho assinado pelo estúdio italiano Pininfarina, responsável pelas linhas de modelos de marcas como Ferrari, Maserati, Cadillac e Peugeot, entre outros.
Mas a situação se complicou quando, no mesmo ano, o governo aumentou em 30 pontos porcentuais o imposto sobre carros importados. Foi um duro golpe para as marcas em geral e quase mortal para as chinesas.
Para piorar, em 2013 um estudo da consultoria JD Power apontou que a média de defeitos em carros chineses vendidos no Brasil era maior do que a de outras marcas. Como resultado, dispararam o preço do seguro e também a desvalorização.
Ciência e incentivos governamentais caminharam juntos
Paralelamente ao progresso e ao declínio dessas fabricantes no Brasil, a China investiu em ciência, na capacitação profissional e procurou entender o sucesso das multinacionais que em seu país produziam. Com o tempo, adquiriu o know-how estrangeiro. Junto a esse fator, o gigantesco mercado consumidor doméstico, ainda em ascensão, fomentou uma enorme escala produtiva. Como resultado, produto era vendido por um preço mais baixo.
“O governo criou infraestrutura, estimulou parcerias de empresas chinesas e internacionais. Assim elas chegaram ao patamar de criar seus próprios projetos.” afirma Segio Habbib, presidente da JAC Motors do Brasil.
A junção da já consolidada indústria manufatureira com o desenvolvimento de tecnologia de ponta levou a China a outro patamar. A potência foi responsável por importar peças de automóveis para a grande maioria das montadoras. “Todo componente eletrônico vem da China. Eles possuem nível de qualidade e tecnologia para exportar para todo o mundo” enfatiza Paulo Garbossa, consultor da ADK Automotive.
Inclusive, o segmento de importação de peças e acessórios automotivos é um dos 10 maiores setores de importados da China. De acordo com Tulio Cariello, diretor de conteúdo do Conselho Empresarial Brasil-China, a importação desses produtos movimentou cerca de 700 milhões de dólares entre janeiro e outubro de 2020.
Campeões de vendas
Excluindo marcas chinesas, diversos dos novos modelos no mercado brasileiro surgiram da parceria chinesa com uma fabricante estrangeira. O VW Taos, que chega no próximo semestre, por exemplo, é irmão do sino-alemão Tharu. Na China, a GM desenvolveu a plataforma para mercados emergentes GEM, que gerou o Chevrolet Onix, Onix Plus e o Tracker. Embora vários componentes sejam desenvolvidos no Brasil, tanto a tecnologia como algumas peças têm origem no país asiático.
Chinesa Gelly é dona da Volvo
Indo na contramão dos mais puristas, que costumam a desconfiar da qualidade dos campeões de vendas, até a marca premium Volvo foi adquirida pela chinesa Geely, em 2010. Na prática, a sueca conseguiu sair do vermelho, investir em veículos elétricos e aumentar expressivamente suas vendas. O XC60 vendido por aqui, por exemplo, vêm importado diretamente da China.
Além disso, a fabricante de pneus Pirelli pertence à estatal chinesa ChemChina desde 2014. Efetivamente, isso significa um intercâmbio de influência. A empresa italiana oferece tecnologia em troca do gigantesco mercado consumidor.
Estigma ao carro chinês persiste?
Depois de anos desde a primeira onda de carros chineses no Brasil, duas montadoras persistiram: JAC, que passa por recuperação judicial, e a Chery, adquirida pelo Grupo CAOA em 2017. A compra pelo grupo Caoa representou uma guinada nas operações da Chery no Brasil, que até então, só fabricava na fábrica de Jacareí (SP).
A marca, então, renovou todo seu catálogo e percebeu algo que se tornava pré-requisito na compra de um carro na China: “O mercado chinês começou a crescer muito rápido e o poder de aquisição cresceu também. Com isso, as fabricantes conseguiram agregar mais valor aos automóveis. A fim de deixá-los mais complexos e mais tecnológicos”, afirma Marcio Alfonso. Os brasileiros começaram a requisitar carros mais completos, fugindo do automóvel simples e sem conteúdo.
A mudança da gama da Chery trouxe automóveis com mais equipamentos, mas que deixaram os preços mais próximos aos de seus concorrentes. “A Caoa (Chery) entendeu que o consumidor exige o carro completo. Assim, essa mudança obrigou as montadoras a seguirem na mesma linha”, reforça Paulo Garbossa.
JAC aposta em elétricos
No caso da JAC, a empresa também reformulou sua estratégia. Em 2019, sua linha de elétricos com cinco novos modelos, dentre eles, a primeira picape elétrica do mundo. Depois, introduziram o iEV 1200 T, primeiro caminhão urbano elétrico da marca.
A ousada iniciativa vem em um momento em que a eletrificação no Brasil ainda engatinha. Embora o número seja recorde, em 2020, cerca de 857 carros elétricos foram vendidos por aqui. Segundo Habbib, há pela frente uma série de desafios para inserir o carro elétrico no Brasil, como o dólar alto e a falta de incentivos fiscais.
Todavia, a participação das fabricantes chinesas no mercado brasileiro nunca chegou a atingir 2%. Em 2019, a Caoa Chery registrou seu melhor ano de vendas, quando emplacou 20.182 unidades, número que representou 0,89% da parcela entre as montadoras. Para 2021, a empresa pretende vender cerca de 34 mil veículos.
Para a JAC Motors, o ano de 2011 foi ano recorde de vendas, ao emplacar 23.747 unidades, segundo a Fenabrave.
Predominância chinesa no Brasil?
Além da Caoa Chery e JAC Motors, há 20 montadoras chinesas catalogadas pela CEBC, das quais atuam de modo direto ou indireto na indústria automotiva brasileira. Dentre essas, Tulio destaca a BYD como investidora no segmento de inovação e eletrificação. Presente em diversas cadeiras produtivas, a empresa produz desde painéis solares a até carros elétricos.
Na visão de Garbossa, a fim de atrair novos investimentos, inclusive no segmento de elétricos, é necessário garantir estabilidade. “A indústria automotiva não precisa de subsídio para trabalhar, e sim de segurança”. De acordo com o especialista, empresários chineses, em especial, têm visão de investimento a longo prazo. De nada adianta o investimento em uma fábrica de elétricos se não há infraestrutura de carregamento, por exemplo.
O presidente da JAC aposta na rapidez da inovação chinesa em carros elétricos. Ela lidera na fabricação de baterias elétricas e investe par tornar o produto mais barato e eficiente. Contudo, acha que a cultura da compra de veículos de zero emissões ainda vai demorar para chegar.
Montadora chinesa no Top 10
O CEO da Caoa Chery acredita que ao menos uma empresa chinesa estará entre as 7 maiores fabricantes mundiais nos próximos cinco anos. No Brasil, ele enxerga a jornada mais difícil, por terem saído de “muito mais embaixo” que as concorrentes e pela situação econômica instável no país.
Além disso, o executivo indica que teremos cada vez mais contato com produtos chineses, diretamente ou indiretamente. A tendência é que, com a consolidação das joint-ventures entre montadoras europeias e chinesas, o volume de automóveis, tecnologias e peças importadas do outro lado do mundo tomarão o setor automotivo. Basta se acostumar.