Cena 1: 500 Milhas da Granja Viana, em Cotia. O ano era 2003. Trata-se de uma antiga corrida de kart de confraternização, dessas que reúnem pilotos de diversas modalidades no pós-temporada, a maioria brasileira. Juan Pablo Montoya estava lá. Era o astro internacional. Ele tinha disputado – e perdido – o título com Schumacher naquele ano, então estava em evidência. Toda a imprensa só queria saber dele, perseguindo-o como se aquilo fosse um paddock da Fórmula 1, não uma ocasião descontraída. E ele? Chato, mal educado, não queria falar com ninguém. Sentindo-se a última bolacha do pacote.
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E lá estava Felipe Massa, o menino do interior de São Paulo, descontraído, sorridente. Ele já estava sob o “guarda-chuva” da Ferrari. Não me lembro se na época corria na Sauber, ou ocupava o posto de piloto de testes na equipe italiana – e, sinceramente, não vou pesquisar, porque isso agora não é o mais importante. Só sei que nunca vi um piloto de Fórmula 1 se comportar de uma maneira tão relaxada (no bom sentido) com a imprensa por perto, ser tão “ele mesmo”.
O entrevistei por quase vinte minutos. Eu ainda era uma “foca”, bem inexperiente. “Podemos falar de Fórmula 1”?, perguntei a certa altura. “Não”, ele foi sucinto. Minha cara de decepção deve ter ficado bem aparente, pois ele logo abriu um sorriso simpático e acrescentou: “Mas podemos falar de qualquer outro assunto. Isso não precisa atrapalhar a entrevista”, disse, consolando-me. E ali, ainda iniciante, eu já começava a ver quem ele era.
Cena 2: Interlagos, último ano de Massa na Ferrari. A equipe não permite a seus pilotos concederem entrevista sem pré-aprovação e sem um assessor de imprensa ao lado. A Ferrari, costuma-se dizer no paddock, “blinda” seus pilotos. E faz isso de maneira contratual. Mas com Massa, isso nunca teve tanta importância.
Então, eu andava pelo paddock com um outro jornalista. Ele viu o piloto dentro do QG da Ferrari em Interlagos. O chamou. Massa sinalizou com a mão que iria atendê-lo. Demorou alguns segundos, encerrando a conversa que estava tendo com outra pessoa. E, então, foi atender o jornalista, que ele não conhecia (como sabia que era jornalista? Todo mundo tem de usar uma credencial de identificação no paddock). Respondeu a várias perguntas, riu, bateu papo. Isso sem nenhum assessor de imprensa ou qualquer outro integrante da equipe ao lado.
Cena 3: no final de 2013, é anunciado que Kimi Raikkonen substituirá Felipe Massa na Ferrari (na temporada seguinte). A reação de Fernando Alonso, considerado por muitos especialistas o melhor do grid: “Mas por que? Kimi sempre foi mais lento que Felipe quando eram companheiros”, declara o indignado espanhol, que seria companheiro do finlandês na temporada seguinte.
Cena 4: Felipe Massa anuncia à Williams que deixará a Fórmula 1 ao final da temporada de 2016. O que se diz no paddock? Claire Williams, diretora da equipe, chora. Quer muito que ele fique.
Cena 5: Massa abandona o GP do Brasil de 2016 e decide voltar a pé para os boxes. É aplaudido, ovacionado, idolatrado, em uma manifestação tão marcante quanto a vista na primeira vitória de Ayrton Senna no Brasil.
Esses, para mim, tendo presenciado ou não, foram alguns dos momentos que deixaram claro quem é Felipe Massa.
Felipe Massa é um cara que a Ferrari nunca mudou. Ele sempre foi simpático, divertido e afeito a conversar e trocar ideias. Carismático, “de boa”. A Ferrari, com suas blindagens, suas restrições, nunca conseguiu mudar isso. Não que ele não tenha respeitado seu contrato com a equipe na qual concordou em trabalhar. Respeitou, até demais. Mas soube conciliar as coisas, sem se tornar um cara desconfiado e ranzinza, que é o que acontece com a maioria.
Sebastian Vettel sempre foi um menino alegre, extrovertido e dono de seu próprio nariz. Mas algo está mudando. Agora, ele é visto pelo paddock quase sempre carrancudo e introspectivo, evitando interagir com as pessoas. “É a Ferrari. A Ferrari muda a os pilotos, acaba com suas personalidades”, escutei de um experiente jornalista na sala de imprensa do GP do Brasil, há duas semanas. Com a personalidade de Felipe Massa, ela jamais acabou.
Felipe Massa é íntegro. Ele deixou a Fórmula 1 porque quis. Porque sentiu que era a hora. Era óbvio que já não estava rendendo bem. Em vez de esperar, postergar, até chegar o momento em que ele seria rejeitado, Massa decidiu sair. Ele já havia dito a Barrichello, quando este ficou sem opções: “Não se rebaixe. Não tope correr em uma equipe de última linha só pelo prazer de estar na Fórmula 1.” E ele seguiu o conselho que deu ao colega. Ele saiu enquanto era tempo. Palmas para o Massa.
Felipe Massa é fiel. Em 2007, ele liderava a corrida, mas entrou no jogo de equipe que culminou no titulo improvável de Raikkonen, já que a McLaren, naquele ano, tinha um carro melhor. Felipe Massa estava à frente de Fernando Alonso naquele emocionante GP do Brasil de 2012, debaixo de chuva. E ele foi tirando o pé, deixando o companheiro se aproximar. E, então, o permitiu ultrapassar. Sem discutir, sem choramingar. Ele não tinha mais chances. Já Alonso poderia vencer o título, que acabou não vindo. Há quem condene esse tipo de atitude. Quem o faz deveria verificar no dicionário o significado da palavra equipe. Deveria Felipe Massa, por egocentrismo (egocêntrico é tudo o que ele não é), prejudicar seu companheiro na busca pelo título?
Felipe Massa foi um grande piloto. Em 2007, uma série de infortúnios o tirou da disputa em que Raikkonen esteve até o fim. Em 2008, ele foi, sem dúvidas, o melhor piloto. Houve a bomba de combustível em Cingapura. Houve o motor quebrado a três voltas do final, na Hungria. Houve algumas trapalhadas em pit stops. Enfim, houve várias falhas da equipe, em um campeonato em que, algo raro, havia duas equipes, Ferrari e McLaren, nas mesmas condições. Hamilton venceu, mas não mereceu. Daquela vez, não.
Em 2009, poucos se lembram, mas Massa estava com sangue nos olhos. Havia a Brawn e havia a Red Bull, ambas muito acima do resto. E Massa era o melhor do resto, o mais bem posicionado. Aí veio o acidente na Hungria, e o resto é história.
Foi esse acidente que mudou Massa? Ou foi a Fórmula 1 que foi mudando, e ele não conseguiu se adaptar? Schumacher, o maioral, era soberbo. Aí voltou à Fórmula 1 e ficou sempre atrás do Nico Rosberg. Rosberg que agora é campeão com todas as glórias, incontestável, mas que não é um piloto do mesmo nível de Hamilton, por exemplo.
Schumacher não se adaptou à nova Fórmula 1. Essa é uma boa teoria para Massa também. Mas, querem saber: o que se diz no paddock é que, se a Mercedes é o que é hoje, 50% – ou mais – é obra do Schumacher. Ele teria ajudado a desenvolver o carro, algo que sempre fez nas equipes anteriores – inclusive escolhendo alguns nomes do quadro técnico do time.
E, talvez, Claire Williams tenha ficado desolada com a saída de Massa pelo mesmo motivo: não, ele não derrota o Bottas na pista, mas é possível que, com sua experiência, ajude a equipe a se desenvolver.
E isso é louvável, principalmente quando se observa o histórico de Massa. Ele correu pela Sauber e foi demitido. Comenta-se que, entre os motivos, estava o fato de ele mal falar inglês, o que dificultava a comunicação com os engenheiros.
Pois Massa, com força de vontade, tornou-se fluente não apenas em inglês, mas também em italiano. Voltou à Sauber, brilhou, foi para a Ferrari, disputou título. Deu a volta por cima. Sempre deu.
Claro que Massa tem seus defeitos. Jamais ele deveria ter deixado Fernando Alonso ultrapassá-lo naquele Grande Prêmio da Alemanha de 2010. Uma coisa é ajudar o companheiro quando um título está em jogo. Ali, não estava. Ainda. Além disso, nos últimos tempos ele passou a choramingar demais, sempre culpar os fatores externos por seus maus resultados. Uma atitude meio Barrichello de ser e algo que não condiz com suas posturas anteriores.
Mas isso não anula o conjunto de sua obra. Massa é íntegro, fiel, carismático e foi o melhor piloto que o Brasil já teve desde Ayrton Senna. Arrojado em seus melhores anos. Arrojado e implacável. Desses caras que dá prazer de ver correndo. E sem ser irresponsável, como o Max Verstappen, a nova sensação da Fórmula 1.
E, principalmente, amado pelo torcedor brasileiro. Quem o detrata é, geralmente, essa gente que nunca nem foi ver uma corrida “in loco” autódromo. Em Interlagos, o carinho que a torcida demonstra por ele é tanto que parece que o cara é um multicampeão.
A Fórmula 1 ficará mais triste sem Massa. Para todos, inclusive para os demais pilotos. Não há um cara do grid que tenha algo contra Felipe. Ele sempre foi um dos mais adorados, se não o mais, do circuito. Desejo a ele toda a sorte do mundo em seus novos passos, seja no DTM, na Fórmula E ou em qualquer outra categoria. E obrigada, Felipe! Você nos representou.
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