Milão, 31 de maio de 2015. O manobrista pega a chave na recepção e alguns funcionários do hotel, no centro da cidade, o acompanham até a garagem. Ele abre a porta do carro e se posiciona ao volante. Aperta o botão de ignição. O som que invade aquele ambiente fechado desperta sorrisos de alegria nos rostos da pequena audiência.
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– Você não faz ideia do que significa um carro desses para um homem, faz? – me pergunta o recepcionista, em um inglês carregado de sotaque italiano, olhando com admiração para o veículo em questão.
Eu faço sim, porque talvez me sinta da mesma forma. E já começo a ter saudades, muitas saudades. Porque sei que este é um dos últimos modelos a trazer motor V8 aspirado. E em breve, ele não estará mais entre nós.
QUEM É ELE?
Milão, Itália… Lamborghini, Ferrari, talvez até Alfa Romeo? Nada disso. O alvo da reverência dos italianos era um Audi RS5. Isso mesmo, um carro alemão. E nem um Porsche, ou um preparado por AMG (Mercedes-Benz) ou M (BMW), que costumam despertar mais admiração, pela tradição, que um RS.
Mais que as rodas pretas esportivas e os detalhes que dão ao desenho robustez e imponência, o que chama a atenção neste carro é o som avassalador e desconcertante que ele provoca. Nenhum barulho consegue ser tão intimidador e, ao mesmo tempo, maravilhoso, como o de um V8 aspirado.
Esse ruído é algo primitivo. Tão primitivo quanto o medo e o desejo. O som é uma promessa para a alta adrenalina do mundo da velocidade.
O RS5 é um dos últimos carros alemães a trazer motor V8 aspirado por causa das cada vez mais rígidas regras sobre emissões de poluentes na Europa e nos EUA – e que, aos poucos, vão chegando também ao Brasil. Na linha Audi, apenas ele e o RS4 têm este propulsor.
Isso, em breve, vai mudar, pois a montadora acaba de apresentar a nova geração do A4, no qual o RS4 é baseado e com o qual o RS5 – derivado do A5 – divide plataforma. Quando os dois modelos RS também mudarem de geração, eles passarão a trazer motor turbo. Assim como já ocorre com os irmãos maiores, RS6 e RS7. E, no caso, do “4” e do “5”, possivelmente o propulsor será V6.
Na Mercedes, não há mais V8 aspirado. Os AMG agora são todos turbo. Até o C63 AMG, que mudou de geração recentemente. O barulho daquele motor era um dos mais emocionantes que já ouvi! Restou apenas a versão cupê com o propulsor aspirado. Ela, porém, também está saindo fora. Ganhou, para isso, uma série especial de despedida.
Na BMW, o propulsor turbo também já impera nos preparados pela divisão Motorsport, ou M. M3 e M4, quem diria, nem motor V8 têm mais. Agora, eles são seis-cilindros em linha biturbo.
Isso sem falar na Porsche, que também está abandonando a aspiração natural. Grande parte da linha atualmente é turbo – e o que não é em breve vai se tornar.
Mas nem pense que é só nas montadoras alemãs que este fenômeno está ocorrendo. Até a Ferrari está entrando na era turbinada. California T e 488 GTB são os dois primeiros da linha atual a ter um V8 turbo. Espere só: em breve, os V12 também vão acabar abandonando a aspiração natural. É inevitável.
Mas ainda resta a Aston Martin, né? Pois é. Só que os motores da marca inglesa são o cúmulo da falta de eficiência. O V12 do Vanquish, por exemplo, tem 568 cv. O mesmo que o V8 biturbo da Audi e da Mercedes-Benz. Isso sem falar na emissão de poluentes, bem mais alta.
A realidade recentemente bateu na porta da Aston. Sem “caixa” para desenvolver motores menos “gastões” e poluentes, a marca recorreu à Mercedes. Vai comprar motores turbo da marca alemã para a próxima geração de seus carros.
A “luz no fim do túnel” para os admiradores da aspiração natural atende pelo nome de Lamborghini. Recentemente, executivos da marca, que pertence do Grupo Volkswagen, declararam que seus carros não usarão motor turbo. A pergunta é: que milagre eles farão para conseguir atender à legislação europeia com motores aspirados? Aguardo ansiosa pela resposta.
E QUAL É O PROBLEMA DO TURBO?
Problema nenhum. Na verdade, o turbo é solução. Foi uma grande “sacada” das montadoras o uso de sobrealimentação combinada à injeção direta de combustível para reduzir o consumo e, consequentemente, as emissões. Além disso, hoje um V6 turbo rende o mesmo, ou até mais, que um V8 aspirado, dependendo da configuração escolhida pela montadora. Isso com uma queima de combustível bem melhor.
E essa nova geração de carros turbinadas ficou muito, muito emocionante mesmo de dirigir. São rápidos, implacáveis. Entregam potência que beira o exagero. Para comparação, um RS7, de V8 turbo, tem 560 cv. O RS5, com o aspirado, gera 450 cv.
Além disso, há o alto torque, que é entregue em rotação bem mais baixa. Isso deixa as retomadas muito mais ágeis.
Mas, aqui, não estamos falando de desempenho, e sim de som. A turbina abafa o barulho do motor. O turbo até consegue roncar alto – alguns com recursos artificiais criados pelas montadoras, como a projeção do barulho por meio dos alto-falantes do sistema de som do carro, tecnologia disponível em alguns BMW.
Mas nunca, jamais, ele terá o barulho instigante do V8 aspirado. Pelo menos, não de forma natural. Quer exemplo mais escancarado que o da Fórmula 1? Na era do V8 aspirado, nas arquibancadas, ninguém conseguia ouvir nada além do trabalho do motor. Hoje, você consegue conversar com um interlocutor até dentro do box, com o carro arrancando após o pit stop.
Em breve, os carros com motor V8 aspirado – e qualquer outro tipo de propulsor com aspiração natural – serão peças de museu. Uma bonita lembrança de uma época em que o mundo era mais fácil, sem tantas oposições. De uma era em que a tecnologia não era tão avançada, mas as relações entre as pessoas, e das pessoas com os carros, eram mais verdadeiras.
Mas é preciso mudar. A “nova ordem mundial” é reprimir os excessos, em todos os aspectos. É exercer maior controle sobre o que se faz, fala e cria, a fim de promover a evolução da humanidade e dos recursos à nossa disposição.
Não sei se vocês concordam ou discordam, mas isso não vem ao caso, porque na verdade nem é este o debate. É apenas um sentimento precocemente saudosista sobre uma era que está chegando ao fim. Sobre o início de uma época em que impera o silêncio. Ou talvez eu esteja apenas ficando velha.
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