Quando o Veraneio preto e branco surgiu na esquina e se aproximou, três jovens que caminhavam pela calçada olharam para baixo, diminuíram o passo e procuraram disfarçar o nervosismo. Eles poderiam estar envolvidos em alguma atividade criminosa ou apenas assustados diante da força intimidadora do Chevrolet. E respiraram aliviados quando o camburão passou batido e sumiu no horizonte.
Essa cena não se passa em 1976 – ano em que foi fabricado o exemplar desta reportagem e outros tantos que eram usados pelo DOI-CODI, braço do Exército responsável pela repressão política durante os anos de chumbo do regime militar – e sim em 2014. Quem está ao volante, fazendo um simples passeio dominical, é o especialista em segurança pública Jorge Lordello, conhecido como Doutor Segurança por suas participações em programas de TV.
“O carro não é mais uma viatura, mas pega de surpresa as pessoas. Algumas se enquadram, se ‘entregam’ se estão fazendo algo errado”, diverte-se.
Fascinado desde a infância pelo universo da investigação policial, ele passou dez anos à procura de um exemplar bem conservado do utilitário Chevrolet. A busca terminou em 2013, quando um fã o alertou, por meio do Twitter, sobre o leilão de uma viatura policial em Matão, a 305 km da capital paulista.
“O modelo estava parado havia muito tempo, mas parecia íntegro. Tinha sido usado para transportar presos em uma cidade pequena e, com 90 mil km, não havia sofrido colisões. Em leilões, não deixam ligar o motor, mas arrisquei.”
Lordello deu sorte: motor, radiador e suspensão estavam em perfeito estado e ele só teve de trocar pneus, bateria, disco de embreagem e boia de combustível. Com a parte mecânica resolvida, chegou a etapa do embelezamento. A pintura, queimada pelo sol, foi lixada e refeita e os bancos e forrações da cabine, ressecados, foram substituídos. “O carro está 95% pronto, só falta uma borracha moldada para o assoalho”.
Tanque de guerra. Dirigir um Veraneio é para os fortes. Grandalhão, pesado e com interior espartano, sem luxos ou ventilador, ele é o retrato de um tempo em que os carros eram feitos para durar. “Se você chuta o para-choque, vê que ele é ferro puro, muito resistente. O carro é um tanque de guerra! Para detê-lo em descidas íngremes, tem de aplicar força extra no pedal, pois não há servofreio”, diz o proprietário.
É preciso também ter boa dose de destreza ao volante. “O camburão é fechado atrás e não há retrovisor interno, só os externos. Isso dificulta as manobras. Não dá para entrar num shopping center, por exemplo, onde as vagas são apertadas.”
Mas esses inconvenientes são pequenos diante da alegria que o Veraneio traz nos passeios, que rendem diversão garantida. “As pessoas olham e sorriem encantadas, umas cutucam as outras para mostrar o carro. Todos querem tirar fotos, de famílias a policiais.”
Confissões. Em meio a tanto saudosismo, há espaço até para improváveis confidências, de pessoas que já se envolveram em confusões no passado. “Isso acontece direto. O cara diz ‘pô, já fui preso nesse carro’ e começa a contar os ‘causos’ que teve com a polícia na época. E fala sempre sorrindo, como se fosse não uma lembrança ruim, e sim uma experiência de vida.”
São frequentes também os bilhetes deixados no para-brisa, de produtoras querendo usar o Veraneio em comerciais ou programas de TV – como o “Teste de Fidelidade”, apresentado por João Kleber. O próprio Lordello, aliás, já aproveitou o carro para fazer uma “pegadinha”.
“Chamei uma garota para sair, sem avisá-la antes sobre o carro. Quando ela viu o Veraneio, tomou um susto, mas logo entrou na brincadeira.”
Melhor assim, pois o Chevrolet caiu como uma luva na vida de Lordello e quem quiser ficar com ele terá de levar o pacote completo. “Eu precisava de um carro que fosse condizente com o que eu faço. E o Veraneio foi incorporado à minha persona.”