Primeira Classe

‘Durante 20 anos fui vítima de violência física, psicológica e patrimonial’

Você está acostumado a ler aqui sobre carros. Hoje, peço licença para contar a história da Juliana*

Rafaela Borges

08 de mar, 2018 · 15 minutos de leitura.

violência contra a mulher" >
#DeUmaVozPorTodas
Crédito: Foto: Arte/Estadão

Geralmente você lê sobre carros aqui, mas hoje vou emprestar minha coluna para a Juliana*. Ela é uma das mulheres vítimas de violência diariamente no Brasil. É uma das milhares de mulheres que ao buscar ajuda não encontram acolhida – se deparam com ainda mais violência. Entender a dimensão da violência contra a mulher é urgente e diz respeito a todos – homens e mulheres.

O texto a seguir aborda violência contra a mulher.

Durante 20 anos, eu fui vítima de violência física, psicológica e patrimonial cometida pelo homem com o qual me casei. Há quase quatro anos, meu filho mais velho tentou me matar.


Busquei muita ajuda psicológica para tentar me reerguer, e hoje tenho uma certeza. Quando um homem agride uma mulher, ele marca seus filhos. Ou eles vão se afastar do pai, ou vão começar a agir como ele.

E uma mulher que sofre violência física, emocional ou patrimonial nunca mais é a mesma. As sequelas são para ela, para os filhos e para a família toda.

Minha história começa no início do governo Collor. Eu sou de Salvador, mas estava, à época, morando em Porto Seguro, a convite de minha prima, com a qual fui trabalhar. Aos 24 anos, em uma festa promovida por integrantes da prefeitura da cidade, conheci meu futuro marido. Ele tinha então 28 para 29 anos, e era carismático, sorridente, bem humorado e muito popular. Parecia também bastante maduro.


Na festa, ele se aproximou de mim e se apresentou. Depois, passou a me ligar. Demorei um mês para sair com ele. Em seis meses, estávamos noivos e, em um ano e meio, casados.

Sou de uma família bastante tranquila. Meus pais tinham um casamento pacato. Nunca brigavam. Aquela era minha ideia de casamento. Mas o meu logo se mostrou bem diferente.

A primeira divergência surgiu logo que nos tornamos marido e mulher. Fomos morar no meio do mato, em um sítio completamente isolado, sem água nem luz, nas imediações da cidade. Eu me sentia sozinha, e ele ficava bastante tempo fora, em Porto Seguro. Muitas vezes, mandava me avisar que não iria voltar para dormir. Era engenheiro, e costumava chegar tarde em casa, quando estava trabalhando em alguma obra. Então, fiquei grávida, e nosso primeiro filho nasceu. Como não tinha com quem deixar meu filho, tive de parar de trabalhar.


A situação financeira apertou, até porque meu marido nem sempre tinha trabalho. Dependia de ser ou não chamado para uma obra. Meu pai passou a nos ajudar financeiramente. Meu marido não se importava com a criança. Nosso primeiro filho tinha problemas comuns a crianças, como alergias, mas ele achava que era tudo frescura. Ele foi muito ausente com nosso primogênito (e com o segundo filho também). Até brincava com o menino, mas não tomava parte em nenhuma responsabilidade, nem mesmo na educação. Eu tinha de me virar.

Do sítio, ele ficava cada vez mais ausente, saindo com os amigos, frequentando a Passarela do Álcool (famoso ponto turístico de Porto Seguro). Ele bebia muito. Eu me sentia cada vez mais isolada e tinha de recorrer a meus pais, que se deslocavam de Salvador. Três anos após nosso casamento, nos mudamos para Ilhéus. Ele abriu uma empresa com dois sócios. Eu fiquei feliz: sairia do isolamento do sítio e a cidade tinha um estilo de vida mais próximo ao de Salvador.

O que eu não sabia é que ali começaria meu inferno. Nossa relação foi piorando. Eu comecei a exigir que ele assumisse mais as responsabilidades com os filhos e a casa, e brigávamos muito. Em Ilhéus, eu voltei a trabalhar e ganhava muito bem. Nessa fase, meus ganhos foram essenciais para a formação de nosso patrimônio, para a manutenção da casa e a criação dos meninos.


Então começaram as mentiras. Ele passou a nos esconder detalhes de nossa vida financeira. E teve início também a estupidez, os xingamentos, as ofensas. Começaram na primeira vez que ele saiu de casa, logo depois que nos mudamos para Ilhéus. Depois, ele me abandonaria mais sete vezes, no decorrer de nosso casamento.

Na briga que culminou em sua primeira saída de casa, ele me disse muitas palavras de baixo calão, que nunca mais deixaria de usar. Durante minha vida, escutava constantemente ele me chamar de “advogada de merda”, “mãe de merda”, entre outras coisas bem piores do que isso. Ele costumava me dizer: “Com você, só debaixo de sete palmos.”

Ele voltou para casa, e aí veio a parte das humilhações e pirraças. Pessoas de fora, amigos e vizinhos, diziam que eu mandava nele, e isso o deixava furioso. Foi então que ele passou a me ridicularizar, e rir de mim, inclusive diante de pessoas de fora e de nosso filho.


Ele também agredia verbalmente nosso filho. Dizia que, por culpa minha, ele iria crescer e se tornar homossexual.

Além disso, ele viajava e me deixava em situação financeira ruim. Sem dinheiro mesmo. A medida que a relação se deteriorava, cancelou nossa conta conjunta, meus cartões de crédito, e, no final, até mesmo meu plano de saúde.

As agressões psicológicas, porém, não foram o ápice. Quando engravidei de nosso segundo filho, contei ao meu marido por telefone – ele estava fora, em Porto Seguro, trabalhando em uma obra. À notícia, ele respondeu: “Que pena”.


Depois, durante a gravidez, ele deu um pontapé em minha barriga. A partir de então, os socos e pontapés se tornaram mais frequentes. Junto a eles, gritos e objetos quebrados contra a parede. Sempre na frente das crianças.

Certa vez, ele bateu em nosso filho mais velho porque a criança, parada no corredor, estava impedindo sua passagem. Eu fui defender o menino, e ele me deu um empurrão tão forte que bati a cabeça contra a parede. Nosso afastamento foi se intensificando, e envolveu a família dele, que vivia em Minas Gerais. Só ele era convidado para a casa de seus familiares. Eu e os meninos, não.

Perdi também o total controle de minha vida financeira, e passei a ser cada vez mais denegrida como mulher. A cada briga, ele descia ao térreo de nosso edifício e passava horas falando mal de mim aos vizinhos. Eles riam de mim. Eu era motivo de chacota. Falávamos em divórcio, mas ele sempre me ameaçava. Dizia que iria tirar de mim dinheiro e filhos. Então, eu comecei a ter transtornos psicológicos.


Dormia mal, tinha taquicardia, ataques e até suspeita de AVC. Eu tinha adquirido síndrome do pânico.

Quando eu tinha esses ataques, meu marido tinha de me levar ao hospital. Em vez de me apoiar, ria de mim diante dos médicos, me ridicularizava. Me chamava de louca, inclusive para minha família, para a qual ligava dizendo que queria me internar em um hospital psiquiátrico.

Certa vez, meu filho teve de fazer uma grande cirurgia em Salvador e eu acabei passando algum tempo por lá. Passava 15 dias na capital baiana. Quando retornava a Ilhéus, ele nunca estava em casa. Eu soube, pelos vizinhos, que ele estava dizendo a todos que havia se separado de mim.


A coisa saiu do controle quando ele começou a me ridicularizar para os vizinhos no edifício de meus pais, no qual eu cresci. Então, certa vez, na porta do prédio, ele deu um escândalo, aos gritos, e me ameaçou de morte. Foi quando decidi denunciá-lo por violência, mas jamais consegui vencer esse processo. Na Bahia, a lei Maria da Penha não funciona.

A essa altura, meu filho mais velho já estava contra mim. Um dos primeiros sinais veio aos 16 anos, quando, na escola, ele jogou um copo de suco em meu rosto.

Há três anos e nove meses, meu marido, com o qual eu já não vivia (embora nunca tenhamos nos separado judicialmente), faleceu. Ele teve câncer. Quando foi diagnosticado com a doença, meu filho mais velho e ele vieram fazer escândalo novamente na porta da casa da minha mãe. Disseram que eu também ia ter câncer e que a culpa pela doença de meu marido era minha.


Nesse dia, meu filho mais velho agrediu fisicamente meu filho mais novo.Durante o tratamento do câncer do pai, o mais velho não deixava que o mais novo fosse visitá-lo. No final da doença, dois meses antes de o meu marido falecer, meu filho mais velho entrou na casa de minha mãe dizendo que iria me matar. Então, começou a aplicar contra mim socos e pontapés.

Conseguiram contê-lo depois de meia hora de agressões. Eu havia prometido, quando ele era mais novo e começou a me agredir, que não o denunciaria. Eu ainda lutava por ele.

Porém, quando a situação chegou a esse ponto, eu não tive mais condições de cumprir essa promessa. Denunciei meu filho mais velho por tentativa de homicídio.


Desde então, ele virou bicho. Quando o pai morreu, não deixou seu irmão ir ao enterro, nem ver o corpo. Ficou com todos os bens do meu marido, que eram também meus bens, e luto agora para reaver parte deles. Meu filho mais novo só não chegou a passar fome porque minha mãe me ajuda.

Meus irmãos também se colocaram contra mim. Ficaram ao lado de meu filho mais velho. Um deles, certa vez, me espancou, em defesa do sobrinho. Hoje eu sou uma pessoa que não consegue raciocinar direito. Não durmo. Tenho o corpo dolorido. Tomo medicamentos há 18 anos. Me sinto morta, e não sei se um dia conseguirei me reerguer.

Não sinto que a situação entre eu e meu filho possa ser resolvida. Eu tenho medo dele. Pavor. Ele se transformou em um bicho. O vi pela última vez no último carnaval, passando na rua. Saí correndo, apavorada.


 

Entender o tamanho do problema é urgente e diz respeito a todos nós. Informe-se, apoie e denuncie. Outras colunistas do Estadão também cederam seus espaços. Leia mais histórias aqui. #DeUmaVozPorTodas

*O nome foi trocado para preservar a identidade da vítima.


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